21 de janeiro de 2011

Pedaços de Cerâmica e Fragmentos de Memória

Semana passada fui pra Itaúnas com alguns amigos de longa data. Eu já tinha passado por lá quando, com uns 8 anos, fui de carro com papai pra Porto Seguro. A única lembrança que tenho é de nós dois procurando nas dunas que cobrem a cidade antiga - pelo o que me pareceu horas - a cruz da igreja, que dizem que dá pra ver.
Voltei pra lá sem pensar na parte histórica, só com a ideia de aproveitar a praia, os amigos e não ir pro forró. Mas quando cheguei nas Dunas foi impossível não despertar a lembrança daquela cidade enterrada.
Sou míope e fiquei encrencada que lá longe dava pra ver uma construçãozinha branca que, pra mim, era uma parte da igreja que eu e papai haviamos procurado 10 anos atrás, mas com o sol queimando minha cabeça não me atrevi a chegar perto. Decidi ir deixando sempre pra depois, depois, depois. Quando eu chegava nas Dunas pensava que estava muito calor e ia deixar pra mais tarde, quando voltava da praia, pensava que tinha que subir muitas dunas pra chegar na tal construção.
Uma noite fui ver as estrelas na ponte. Fiquei ali o que me pareceu horas. Era um universo inteiro sobre minha cabeça que eu olhava de boca aberta. Só reconhecia as três marias, mas aos poucos fui aprendendo os outros nomes. Escorpião nascendo de um lado do céu, o Cruzeio do Sul noutro canto, um planeta bem bonito e brilhante pro lado das dunas. Dava pra ver a luz das cidades próximas em alguns cantos do céu. Eu vi a via láctea, eu vi a via láctea, a via láctea. O tal leite derramado no céu. E eu vi estrela cadente, três estrelas cadentes. Demorei muito tempo pra conseguir ver uma e confundi muitos grilos com estrelas cadentes, mas depois eu vi três e não fiz pedido nenhum, porque os pedidos que estavam na minha cabeça, já estavam sendo realizados. Um era ver estrela cadente, o outro era ver o céu tão estrelado como estava e o terceiro era estar em contato com aquilo que pra mim é divino, a tal da natureza, dos sapos coaxando, das dunas cobrindo uma cidade inteira, dos barulhos silenciosos da noite. Me senti feliz. Tão feliz que no dia seguinte não esperei ninguém acordar e fui pra praia sozinha.
Me sentia feliz comigo mesma, me sentia respirando, me sentia expandir. Ri sozinha e um hippie ficou conversando um tempão comigo sobre aquele lugar que havia me encantado tanto. Ele falou que, já que eu tinha gostado tanto de lá, era pra eu casar com um nativo e me mudar pra lá. Depois que ele foi embora fiquei um bom tempo devaneando a possibilidade.
Foi delicioso. Sempre considerei a praia, a areia, o mar, o sal, o vento como uma sessão de descarrego pra mim, limpeza da alma. Não sei ser feliz sem isso e quando saio de lá me sinto - acho - como se tivesse confessado com o padre. Leve, feliz, toda minha.
Voltei pra casa e todos estavam indo pra praia ver o por do sol. Resolvi ir junto.
Aquelas dunas me invadiram e depois achei um poema do Manoel de Barros que conseguiu falar parte do que senti aquela tarde. Enquanto o sol não descia fui passear sozinha até a tal construção, que na verdade não era construção, era uma placa (míope). Fui até a placa e vi que ali, sob meus pés estavam uma igreja, um cemitério e o mastro da antiga Itaúnas. Arrepiei. Arrepiei por muito tempo. E fiquei andando por aquela área, sentindo meus pés formigarem, como se tivesse muita energia.
Tem certas coisas que mexem muito comigo. Não sei bem o que, depende de muita coisa, mas há como um encantamento que me faz querer expandir e me emaranhar no lugar. Eu poderia passar horas sentada ali, sem pensamento algum, só respirando e sentindo.
Fomos embora após o por do sol e quando saimos do parque os Ticumbi tavam tocando dentro do Museu. Foi meio que um chamado pra eu entrar ali. Eles tocaram menos de 5 minutos quando eu entrei e sairam tocando pela cidade. E eu fiquei, no museu, sozinha novamente.
Ali tinha uma maquete da cidade antiga, e eu perguntei pro guia o que era aquilo que eu tinha visto nas dunas e ele me mostrou exatamente o lugar e disse que ali perto dava pra ver ruínas de uma casa. Deu vontade de voltar pras dunas só pra ver a tal ruína. Em cima da maquete, havia algumas fotos em preto e branco. A legenda dizia que era fotos da última família que saiu de Itaúnas. As fotos mostravam uma familia humilde, todos de costas. Um pai, uma mãe, uma criança de mãos dadas com a mãe e um bebê no colo que era o único que olhava pra trás. Olhos de quem deixa um lar. Não consegui desgrudar os olhos dessas fotos. Uma queimação subiu minha garganta, como se fosse um choro. Me senti iluminada. Não estava feliz, nem triste. Meu estado era de contemplação. No museu tinha algumas histórias, uns pedaços de cerâmica, de garrafas de bebida, de remédios, de pratos, tudo da vila antiga. Achei interessante, mas não me tocou muito, pois estava tudo guardado em uma caixa de vidro. Eu não podia tocar, não podia sentir a textura, o cheiro, rodar pra ver os detalhes, se era pesado. Agora eu vejo o quanto eu queria tocar aqueles objetos. Como a fotografia me tocou os olhos e como as dunas me tocaram os pés.
Fui embora. Comigo veio a saudade. E quase dei cambalhotas quando uma amiga sugeriu de voltarmos agora em fevereiro.


O poema do Manoel de Barros é esse:

O abandono do lugar me abraçou de com força.
E atingiu meu olhar para toda a vida.
Tudo que conheci depois veio carregado de abandono.
Não havia no lugar nenhum caminho de fugir.
A gente se inventava de caminhos com as novas palavras.
A gente era como um pedaçõ de formiga no chão.
Por isso o nosso gosto era só de desver o mundo.

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